Que a Justiça seja feita [Coruja]

- Sinceramente, não entendo essa cidade. Mas vamos ao que interessa. Estou a procura de informações sobre um outro juban, alguém da minha espécie, mas que tem uma cicatriz no rosto. Sei que ele esteve neste beco, mas cheguei tarde aqui. Você viu para onde ele foi?

Amon não gostava de mentir, mas também não queria revelar que estava lá por causa do guri. Então resolveu omitir partes que julgava conveniente para que o homem pudesse sentir-se mais a vontade.

- Um Juban... com uma cicatriz? - o homem pareceu confuso. - Quem é você? Oque você que o chefe Khain!?

Ele parecia um tanto desconcertado com a pergunta. Aparentemente ele era um subordinado do tal Juban, pela forma como falava.

Amon sorriu com o canto da boca.

- Então você conhece o Khain? - blefou Amon - Bem, tenho assuntos de família a tratar com ele. Nada que deva ser tratado com humanos, se é que você me entende. Agora faça-me um favor: leve-me até o seu chefe.

Amon mantinha a postura altiva. Aquilo ajudava de alguma forma. Apesar de estar odiando ter que se passar por um 'deles', aquilo era necessário para alcançar o bem da criança sequestrada.

A princípio o homem duvidou um pouco de Amon, olhando-o de cima abaixo com olhar analítico.

- Você se parece bastante com ele mesmo... Será que é por esse assunto a tratar que o Khain anda tão estranho? Estávamos ficando preocupado com o chefe. Ele nunca falou nada da família, venha comigo, levarei você à nosso covil.

Fora extremamente fácil convencê-lo da relação falsa entre si e o tal Khain e Amon não conseguiu discernir qualquer traço de mentira nas palavras do homem. Provavelmente era seguro seguí-lo.

Ele andou pelos becos escuros nos quais Amon mau esxergava a si mesmo com extrema naturalidade, guiando o paladino pelas ruelas mais complicadas e confusas. O Juban não conseguiria, em hipótese alguma, repetir os passos até o esconderijo do tal chefe.

Chegaram, por fim, à um pequeno casabre de dois andares, aparentemente abandonado à mais de ano. O homem bateu na porta de madeira putrefata que parecia que iria ceder à primeira brisa que por ela passasse.

- Patrick aqui, o leão nunca trai. - resmungou o homem, aparentemente uma senha secreta para ingressar no local.

A porta foi aberta por dentro, dando passagem para vocês dois.

Amon se comportava de forma autiva, como um exímio convidado, ou mesmo parte da família. Não temia o seu rededor. Não olhava para todos os cantos. Apenas limitou-se a, antes de entrar, puxar o camarada que seguia para uma pequena conversa particular.

- Patrick, antes de entramos, faz tempo que não vejo Khain e ele sempre foi o mais durão da família. Você pode me atualizar sobre ele para eu não pisar na bola? Quero saber se ele ainda anda metido nuns troços ...

Quanto mais fundo no buraco do coelho, mais fácil ficaria para o Paladino Amon-Ra ser descoberto. Ele sabia disso e foi por esse motivo que arriscou aquele blefe com o Patrick. Se não colasse, ele ainda estaria do lado de fora. Suas chances de sobrevivência seriam grandes. Lá dentro ... bem, isso era para se preocupar depois.

Patrick, ainda que tivesse estranhado a atitude de Amon, pareceu responder sinceramente.

- Khain... Ele tem estado um pouco ausente faz um tempo. Antes nós não fazíamos nada muito grande, só um roubo aqui, uma recompensa ali... Mas de uns tempos pra cá ele parece querer mais e mais dinheiro. Hoje mesmo, ele sequestrou uma casal de crianças! E menina conseguiu fugir, graças a deus, mas o menino ainda está aí dentro. Cara, você tem que ajudar ele, ele tá com algum problema.

A preocupação que este tal Patrick demostrava em relação ao seu chefe explicitava uma aparente intimidade incrível dentro do grupo.

Era muito estranho para Amon ouvir aquilo. Era como se jogassem um balde e água fria nos seus conceitos de bem e mal. Antes, tudo era preto e branco. O mal era mal e pronto! Deveria ser julgado e, preferencialmente, eliminado. Mas agora ... tudo tinha ficado cinza de repente. Aquele Patrick, por exemplo, não tinha o menor remorso de fazer roubos, mas condenava a atitude do chefe de sequestrar pessoas. Aquilo só podia significar uma coisa: mesmo as pessoas más poderiam ter alguma chance de redenção. Caberia a Amon ser não apenas um juiz, mas também uma luz viva a guiar todos que quisessem trilhar o caminho do bem.

Amon sorriu para Patrick, um sorriso sincero, mesmo que o homem não entendesse.

- Obrigado Patrick. Vamos ver Khain agora.

- Certo, vamos. - respondeu, devolvendo, mesmo que timidamente, o sorriso.

Pisaram porta adentro. O assoalho rangeu, deixando claro que ninugém fazia a limpeza ou manutenção da casa há muito tempo. A luz do exterior não entrava por nenhuma fresta, tornando toda a iluminação do lugar provinda das inúmeras velas e tochas distribuídas irregularmente por mesas e pelas paredes.

Olhando em volta, Amon viu poucas pessoas. Três homens e uma mulher estavam na sala, sentados ao redor de uma mesa bebendo e conversando, enquanto jogavam alguma esécie de jogo de azar com cartas. Em pé, ao lado da porta, estava uma outra mulher, séria, olhando fixamente para Amon-Rá.

- Patrick, você voltou! - disse um dos homens, sorrindo e se levantando. - Espero que não tenha esquecido da adaga, senão o Khain vai matar nós dois.

- Trouxe alguém com você? - comentou a mulher sentada, arrumando seus longos cabelos loiros, tirando-os da frente dos olhos. - Não estávamos esperando visita hoje, estávamos?

A atmosfera do lugar tornou-se ligeiramente hostil e tensa, Amon podia sentir o olhar de todos ali analisando-o de cima a baixo.

- Este Juban disse ser parente de Khain. Como eles realmente se parecem, acho que ele está dizendo a verdade. E cá entre nós, oque ele ganharia mentindo sobre isso? - Patrick explicou a situação, e a tensão no ar foi dissipando-se.

- É verdade, não é como se ele tivesse o que roubar de nós! - disse um homem que estava sentado, virando uma garrafa de alguma coisa e rindo. - Eu sou Hammond, prazer, seu Juban. O Khain tá na quarto dele, ele disse que não queria ser incomodado, mas acho que pra família ele abre uma exceção.

- Meu nome é Julie. - apresentou-se a jovem loira que também estava sentada.

- Este são Carlos e Berrik. - Disse Patrick, apontando para os outros dois homens. - Aquela é a Lucia, mas acho que é melhor pra sua saúde não tentar falar com ela não. Ela só é bonita por fora.

Todos riram, menos a tal Lucia, que continuou seriamente observando cada movimento de Amon. Patrick fechou a porta atrás de si. O ambiente ali parecia mais o de um bar lotado de amigos que o de um covil de bandidos.

- Quer que eu chame Khain agora, Juban? - disse, afinal, Lucia, com um tom um pouco ríspido.

Amon mantinha um ar de amigos para todos, mesmo para a tal Lucia que mostrara-se mais hostil.

- Não carece, Lucia. Obrigado pela preocupação. Deixe Khain descansar bem. O que tenho para tratar com ele vai ser dureza ...

Então virou-se de volta à mesa e dirigiu-se a um deles.

- Diga-me Hammond, as coisas estão difíceis por aqui? Me pergunto por que motivo Khain não procurou ajuda da família ...

Amon não se sentou em nenhuma cadeira. Ficava observando o lugar, procurando indícios de onde poderiam ter guardado a criança.

- Não sei, cara. Parece que ele tá desesperadamente precisando de dinheiro faz um tempo. - Ele fez uma cara azeda. - E ele nunca falou nada sobre a família dele, mas nós também nunca perguntamos muito.

Amon olhou por todo canto que podia observar passivamente. Pequena como era, a casa era constituida pela sala, que também era a cozinha, no andar térreo em que estava agora e mais um cômodo no andar de cima. Visto então, que se tratavam apenas de dois recintos, Khain deveria estar com o garoto no andar superior.

- Mas bem que você podia nos contar alguma coisa, né? - disse a tal Julie, sorrindo abertamente, com um olhar terno. - Khain sempre cuidou de nós como se fôssemos sua própria família, mas nunca soubemos muito de sua verdadeira... linhagem.

- Isso é verdade. E cá entre nós, oque vocês são? Irmãos? Ou por acaso é filho dele? Por que a diferença de idade entre vocês é aparentemente grande. - comentou Carlos, um tanto curioso, mas todavia amigável.

A única que aparentemente suspeitava de algo provindo de Amon era Lucia, mas ela parecia não pretender interromper a conversa que os outros estavam construíndo.

Amon riu um pouco do comentário. A cada pequena piada, mais informações ele adquiria de Khain.

- Não não ... nada disso. Bem, eu até consigo entender o porquê dele ter se afastado e não comentar nada sobre a família. Veja bem que nós, Jubans, não somos como Khain está se comportando. Eu mesmo não aprovo os atos dele. Nós pregamos e acreditamos numa vida melhor para todos, mas de forma justa e honesta. Pode parecer balela, mas lá na minha terra nunca falta nada a ninguém. Não há motivos para roubar ou mesmo chegar a sequestrar pessoas.

Amon falava com tranquilidade. Todos ali sabiam dos atos de Khain e aquele parecia ser um lugar onde todos costumavam conversar sem problemas. Então, quanto mais natural Amon fosse, melhor para ele.

- Por exemplo, em minha terra, todos temos as refeições do dia bem fartas. Temos nossas riquezas pessoais também. O melhor é que podemos usufruir delas em público. Me diga - perguntou então dirigindo-se a Julie - você poderia sair na cidade com um colar que roubou? Aposto que você ficaria muito mais linda do que já é, mas infelizmente alguém poderia reconhecer o objeto e você seria presa. De que adianta ter o colar então, se não poderá realçar sua beleza?

Aquilo estava ficando perigoso, mas Amon precisava semear o bem. Aquela sementinha, aquele desejo, aquele vislumbre da luz. Aquilo poderia criar raízes nos corações dos presentes, se não da maioria. Mesmo que Amon morresse naquele dia, já sentia que não teria sido em vão.

- É, bom... - Julie olhou para o chão por alguns instantes, cabisbaixa. - Oque você diz não deixa de ser verdade, mas...

Naquele momento, o som de uma porta rangendo vindo do andar superior interrompeu a fala da jovem.

Das sombras da escada, veio um Juban alto e forte, talvez até maior, fisicamente, que o próprio Amon. Ele mostrava uma grande cicatriz no rosto, que ia desde sua testa, passando por um olho que ele mantinha fechado, até seu queixo. Vestia roupas simples e, por cima das mesmas, uma proteção de couro básica. Ao ver Amon, ele abafou uma risada.

- Ah, você por aqui! - Ele fez uma cara de quem reconheceu um amigo que há eras não via, e se aproximou para cumprimentá-lo.

Todos ali ficaram um pouco espantados, primeiramente com a aparição aparentemente inesperada de Khain quanto com sua atitude.

- Creio que tenha algo sério a tratar comigo, não? Senão não viajaria todo este caminho até aqui só para me encontrar. - Comentou o Juban, sorrindo. - Venha comigo, poderemos discutir com mais calma e privacidade lá em cima. Me desculpe se estes te incomodaram. Eles podem ser meio bobos quando bêbados, mas normalmente são boa gente.

Dito isso, ele prontamente começou a subir de volta as escadas, gesticulando para que Amon o seguisse.

(( Eu reconheço o Juban? Creio que para mim não seria difícil. Na verdade, difícil seria distinguir humanos, mas um Juban seria muito fácil. É como os japoneses que se reconhecem facilmente, apesar de para nós serem todos iguais XD ))

Amon não estava entendendo nada. Mas não ia quebrar a máscara naquele momento. Na verdade, acreditava na sinceridade do homem. Assim, limitou-se a educadamente despedir-se dos demais e seguir Khain escada acima. Como todo ser do bem, Amon deixava sua guarda abaixada por tal confiança.

[Não, Amon tinha certeza de nunca tê-lo visto anteriormente.]

Subiram as escada em silêncio, e, ao chegar no andar de cima, Amon já podia escutar as vozes dos amigos conversando e rindo no andar de baixo. Kahin entrou, seguido pelo paladino, e fechou a porta.

Estava agora num cômodo pequeno, talvez metade do tamanho do piso inferior. Neste quarto haviam camas, várias camas, espalhadas. Aparentemente todos eles dormiam ali, juntos. Havia também, no apertado espaço restante, uma msa, sobre a qual havia um livro aberta e uma vela acesa.

- Pronto. - disse o Juban, com um suspiro. - Agora podemos largar a farça, não? Aproveitando que estamos à sós. Quem é você e oque quer comigo?

Ao olhar em volta, Amon notou que uma das camas estava ocupada: só não conseguiu distinguir oque nela estava deitado.

- Não te denunuciei lá embaixo por que ele poderiam fazer coisas indevidas. Creio que não nos deseje mal algum, então decidi dar-lhe um voto de confiança. Sinta-se à vontade.

Com essas palavras, o juban sentou-se numa cadeira pequena à mesa, e, fechando o livro que se encontrava aberto, fitou Amon, aguardando por uma resposta.

Amon fitava o homem de volta. Observava além da cicatriz quem manchava o seu rosto. Via era sua alma. Percebia o gesto bom por trás de um coração possivelmente amargurado. Queria entender mais sobre o homem, entender o que o motivava a cometer crimes e, quem sabe, tentar ajudá-lo a sair daquele mundo.

- Gostaria muito, mas muito mesmo, de conhecer você melhor, Khain. Me espanta ver um semelhante envolvido com crimes. Até antes de você aparecer, eu ainda tinha minhas dúvidas de que se tratava mesmo de um Juban.

Amon fez uma breve pausa e olhou para a cama ocupada.

- O garoto ... ele deve estar sentindo tanta falta da irmã, quanto ela sente dele.

Amon mantinha-se calmo. Sentia-se estranhamente entre familiares, apesar de poderem se transformar em inimigos num piscar de olhos.

- A propósito, meu nome é Amon, da família Ra. Sei que teu nome é Khain, mas desconheço sua família.

- Eu nasci, caro Amon, de um crime. Minha vida é um crime. Por isso, fui abandonado pelos meus pais jubans quando muito pequeno. Fui criado por uma humana doente. Trabalhei por essa mulher por anos da minha vida, éramos felizes. Quando tinha pouco menos de vinte anos, ela morreu.

Não havia notado antes, mas oque Carlos havia dito tinha um fundo de verdade: ele tinha mais idade que Amon, os indícios da mesma claros em sua pele já marcada pelo tempo.

- Não demorou muito para, sozinho numa cidade onde Jubans são uma minoria, eu acabar involvido no crime. Não era fácil, mas no mínimo eu não passava fome. Quando tinha quase três décadas, encontrei um casal de crianças abandonadas na rua. Eram Lucia e Hammond. Irmãos, filhos bastardos assim como eu, abandonados para morrer. Peguei-os pra criar. Logo, a família cresceu, Julie chegou depois, Carlos em seguida. Patrick foi o mais recente irmão que ganharam.

Ele levantou-se da cadeira, foi até um armário, do qual tirou uma garrafa de algum fermentado e um pedaço de pão duro. Serviu um copo para si e outro para Amon, entregando a bebida ao paladino num gesto de aparente hospitalidade. Deu também um pedço do pão para o convidado, embora não parecesse esperar que aquilo fosse comido, pelo estado velho do alimento.

- E é isso. Nós vivemos assim, como uma família, como um grupo de criminosos, como uma gangue, você decide. Me chamam de líder ou chefe lá fora, me tratam como um pai aqui dentro.

Ele lançou um olhar distante para o garoto que dormia, calmo, na cama.

- Eu não posso entender como um irmão se sente, separado do outro. - ele disse, resignado, e tomou um gole da bebida. O aroma ligeiramente azedo e refrescante da mesma enchia o quarto, um tanto agradável. - Mas entenda: sei perfeitamente como um pai se sente, se separado de seus filhos. O pai destes irmãos me pediu para que os levasse de volta à casa. O garoto me contou a história, mas acho que não lhe interessa. Já falei demais, não acha? Por que não me fala um pouco sobre a sua pessoa?

Amon pensava muito. Aliás, sua cabeça chegava a doer de tanta informação conflitante a ser digerida. Amon simplesmente não conseguia decidir se Khain era bom ou mau. Afinal, existiam pessoas boas ou más puramente? Ou seriam os atos bons e maus, isoladamente? Cuidar daqueles humanos lá embaixo era bom. Raptar pessoas era mau. Mas ajudar um pai a recuperar seus filhos era bom (a princípio). Eram muitos os problemas a resolver, e Amon não tinha nem tempo nem cacife para tal. Ainda era novato, principiante. Talvez fosse necessário levar o caso a algum superior da ordem dos paladinos. Ou talvez Amon pudesse resolver todos os problemas cuidando da raiz.

- Eu ... Eu nasci e cresci nas terras de nossos antepassados. Entendo os seus motivos e principalmente a facilidade com a qual você tem de misturar os valores. Simplesmente você não teve opurtunidade de se envolver com a sociedade a qual você pertence.

Amon não se serviu da bebida e tampouco comeu o pão. Limitou-se a retirar a adaga de prata de seu bolso e depositar sobre a mesa.

- Acredito que isso seja seu. Eu poderia ficar calado e levar comigo. Daria várias moedas. Mas não o fiz. Eu escolhi fazer o certo. Sempre tem uma escolha. Nem sempre é fácil. Eu mesmo estou sem moedas. Meu dinheiro simplesmente acabou. Ainda assim eu persisto no caminho correto, no caminho do bem. Tenho fome, mas não como a sua comida. Não pense que a acho ruim. Eu comeria couro de sapatos velhos se fosse necessário. Rejeitei a comida porque vejo que vocês precisam mais do que eu. Isso, novamente, é uma escolha.

Amon fez nova pausa. Estava triste. Triste pela história de Khain e pela falta de oportunidade que o homem tivera na vida de conhecer o lado bom da vida, o lado do bem.

- Eu sei. Me arrependo até hoje pela primeira vez que roubei. - Ele disse, pegando a adaga da mesa. - Foi uma certa adaga, o primeiro objeto que peguei de outra pessoa. Você veio até mim para devolvê-la? Ou melhor, por quê você veio até mim? Creio que isso ainda permaneça desconhecido.

Ele guardou a adaga no mesmo armário de onde retirara a comida, e não se deu ao luxo de esperar por uma resposta.

- Veio buscar o menino? - Ele perguntou, com um ar cansado. - Ainda estou esperando alguém que venha tentar fazê-lo, desde que a garota fugiu. Estes dois... Eles estão sofrendo mais do que nós mesmos, se quer saber.

- Para falar a verdade, sai do conforto de minha cama de campanha para a noite fria exatamente por este motivo.

Respondeu Amon. Acompanhando Khain com os olhos.

- O choro da irmã deste garoto me chamou a atenção e o dever me impeliu a ajudar. Contudo, já não estou certo de tudo. Não sabia que fora o pai deles a te contratar. Afinal, o que está acontecendo com estas crianças?

Amon tinha curiosidade de saber a verdade por detrás da verdade. Só assim poderia fazer um julgamento mais preciso e enfim tomar uma decisão.

- Sinceramente, eu também não sabia muito bem até agora pouco. Fui procurado por um homem que me disse ser pai de duas crianças que haviam desaparecido. Era meu dever encontrá-las e devolvê-las em segurança, de preferência. Mais que isso, quem me contou foi o próprio garoto.

Khain comeu um pedaço do pão de que se servira com um pouco de dificuldades: a comida parecia realmente dura.

- Parece que eles são de família pobre. A irmã mais velha dele ouviu os pais conversando sobre dinheiro e como era difícil criar os dois. Eles chegaram à conclusão que era melhor para a família como um todo se seus pais não precisassem mais cuidar deles. Por isso, fugiram de casa. Eles não carregam nada além das roupas do corpo; o próprio garoto não comia há dias. Estas crianças simplesmente foram forçadas a crescer muito rápido. A falta de dinheiro as fez perderem a infância... Mas não quero que percam também a vida. Por isso aceitei este trabalho. Não contei a história para os outro por que senão eles podem fazer coisas desnecessárias...

Ele olhou para seu próprio copo, um olhar amargurado. Tomou um gole.

- Pretendia levar o garoto comigo para pegar a irmã dele amanhã. Mas se você conheçeu ela, pode facilitar tudo. Por que não conversa com ela? Diga-lhe que os pais dela prefeririam morrer de fome a viver sem eles. Não se preocupe; é a mais pura verdade.

Amon assentiu com a cabeça e mantinha um leve sorriso no rosto, pois se afeiçoava cada vez mais com o velho Juban.

- Eu não desconfio de você, Khain. Se o fizesse, nem estaria aqui. Teria começado uma batalha lá embaixo mesmo. Contudo, acho que todos merecem um voto de confiança e uma oportunidade de provarem seu valor. Falarei com a menina e a trarei aqui, se for da vontade dela. Perceba que para os humanos ela já decide por si mesma. Devemos respeitar sua decisão, seja qual for. Quanto ao garoto, bem, esperemos.

Amon fez mensão de levantar-se mas interrompeu o movimento.

- Perdôe-me, mas eu não faço idéia de como retornar a esta casa. Na verdade, mal saberia sair e voltar ao albergue. Poderia me ajudar?

- Veremos, se algum de meus filhos quiser te acompanhar, permitirei. Caso contrário, irei eu mesmo. Pode ser? - ele perguntou, guardando a garrafa quase vazia da bebida de volta no mesmo armário que ele aparentemente usava para tudo. - Ou minha companhia não seria boa para lidar com a garota?

Ele levantou-se. ele parecia realmente preocupar-se com a jovem. Talvez ele imaginasse que ela poderia ficar com medo ou fugir caso o visse.

- Acho que sua companhia é mais que perfeita. Existe um mal entendido na cabeça da garota e devemos sanar este problema. Contudo, antes de irmos, gostaria de fazer uma última pergunta ...

Amon olhava para Khain e rezava para que a resposta fosse favorável. Queria muito que tudo o que Khain havia lhe dito antes fosse realmente verdade. Mas Amon não poderia fechar os olhos para uma possibilidade de fraude. Ele deveria trazer luz à justiça sempre. Engoliu em seco e finalmente completou sua frase.

- ... Se os pais dessas crianças são tão pobres que não tem o que comer direito, como poderiam pagar pelos seus serviços?

- Eu já disse: os pais deles prefeririam morrer de fome a viver sem eles. - Ele tirou da cintura uma algibeira um tanto vazia. - Isso foi oque conseguiram vendendo tudo oque podiam.

Ele jogou a algibeira para que Amon pudesse ver melhor a quantia. Era realmente pouco: aquilo não poderia pagar nem a comida de duas pessoas, imagine então de quatro. E pagar serviços mercenários como aquele que Khain estava prestando então, nem pensar. O que aquele Juban fazia, se dizia a verdade, era quase um ato de caridade.

- Neste caso, vamos logo encontrar a menina. Levemos o garoto de uma vez por todas? Ou deixamos ele dormir?

Resumiu Amon, profundamente aliviado de que Khain falava a verdade. Ao menos, estava convencido disso.